quarta-feira, 22 de maio de 2019

“SENTIDO OBSCURO”?

Para entendermos o que é esse “sentido obscuro” de maneira fácil, é quando se diz ou se usa uma palavra escondendo o verdadeiro sentido. Não, não é um duplo sentido, como por exemplo, de palavras que se usa numa piada o com conotação que envolve a sexualidade. Mas se usa uma palavra com a intenção de esconder um propósito. Veja o título de uma canção censurada na época, de Chico Buarque de Holanda.


Cálice
Chico Buarque


Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue 
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta,
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda, a porca já não anda,
De muito usada a faca já não corta,
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta.




Reparem o título: “CÁLICE”, que lembra o que? CALE-SE. Assim, o título esconde a intenção de esconder o segundo termo. Indiscutivelmente, essa letra é um belo poema de rimas ricas, formadas por verbos, substantivos e adjetivos em versos decassílabos.

O que mais chama a nossa atenção é o interessante jogo de palavras, que a princípio parece não ter nexo, mas serve para driblar o sentido real da proposta do poeta. Outra coisa interessante, é o “apelo religioso” na primeira estrofe, que ajuda a enganar o censurador. Mas no fundo, existe sim, uma critica severa ao regime da época. Os termos censura, prisão, guerrilha, liberdade não estão ali expressos, mas está subentendido. Daí impressiona o jogo de palavras. Mas a mensagem está lá, clara como água, mas camuflada do que devia continuar sendo feito. 

Dessa forma, quando uma obra é censurada a mensagem não desaparece por completo. Ela deixa vestígios que ficam encobertos pelo uso de outros símbolos de sentido implícito que o artista ou o movimento imprime.


Porque a música foi a mais visada pela censura? Tocada nas rádios e na televisão, a música é aprendida por milhares de pessoas que a repetem não uma, mas muitas vezes e em diferentes lugares, fazendo com que a mensagem chegue ao destino desejado. Além disso, no meio do caminho, a letra da música serve mensagem subliminar para que outras pessoas entrem para o movimento. Daí a necessidade da censura devido a uma luta armada que estava causando um caos na sociedade e provocando excessos de ambos os lados.

A censura não foi uma prerrogativa do Regime Militar brasileiro, mas uma das inúmeras ocorrências usadas no processo histórico mundial. A censura imposta é uma atitude extrema diante de uma situação-problema de difícil solução e tomada para tentar desatar os nós que formaram o problema. Com certeza, silenciar, censurar, excluir e interditar a fala de alguém sem que haja uma situação-problema cuja dificuldade exija tal atitude é, simplesmente, um desejo “de poder”, “de controle” ou “de seleção ”.



E na visão do regime da época, a censura foi necessária para que as ideias revolucionárias não se espalhassem ainda mais. Tanto que, na medida em que a sociedade ia voltando a normalidade, a censura foi diminuindo até sua total extinção.